Projeto Humanarte:promovendo valores humanos atravé da história da arte

A execução de Lady Jane Gray (1833), Paul Delaroche

No verão de 2005, a equipe pedagógica da National Gallery de Londres convidou a escritora Malorie Blackman para criar e aplicar uma dinâmica de leitura de imagem e produção de texto com 150 alunas da Skinners' School for Girls, da periferia da capital inglesa. As meninas cursavam o equivalente ao nono ano do Ensino Fundamental do Brasil e tinham a tarefa de escrever uma redação sobre a tela escolhida. Para a escritora, conhecida por seus bestsellers para crianças e jovens, a obra selecionada entre os destaques do acervo do museu tinha as características adequadas para a dinâmica. “A execução de Lady Jane” (de Paul Delaroche), representa a queda da rainha de 17 anos que governou a Inglaterra por apenas nove dias, vítima de uma trama pela disputa do trono. A tela se adequava perfeitamente ao trabalho proposto, pois era “uma pintura particularmente comovente sobre uma adolescente enfrentando o momento final de sua vida”, afirmou a escritora.
Malorie propôs às meninas o desafio de assumir o papel de um personagem da cena e redigir em primeira pessoa a cerca dos sentimentos e pensamentos no momento prévio à execução em um calabouço. Era um exercício de empatia. “Os resultados foram ainda melhor do que eu poderia esperar, pois todas as meninas sem exceção produziram um trabalho incrível. As emoções relatadas foram fascinantes, indo da raiva à piedade e à resignação”, declarou a escritora.
Trata-se de um nível complexo de produção de texto, mas extremamente rico, principalmente se associarmos a este exercício as técnicas descritas em nosso comentário de novembro, sobre a tela “O Morro” (1933), de Portinari.
Antes de conferirmos os resultados da dinâmica de Malorie, vamos esclarecer alguns aspectos da tela e do autor.
Delaroche (1797 -1956) foi o pintor francês mais popular no início do século XIX. Considerado por muitos como um pintor romântico, devido aos temas dramáticos e contemporâneos, sua técnica aproximava-se muito do neoclassicismo. O detalhe do vestuário, o estudo preciso das variadas texturas, a superfícies suaves e predomínio de um desenho minucioso combinam com a composição dramática, em que as gesticulações e as expressões contidas reforçam o ambiente de apreensão que comumente seus quadros transmitem.
Durante sua vida o seu trabalho teve reconhecimento internacional maior do que Ingres ou Dealcroix, hoje considerados mestres maiores. Especializou-se na criação de grandes telas de pintura histórica, mas com o requinte da pintura de gênero. Deu tratamento idêntico tanto a personagens bíblicos, quanto a lideranças modernas, tendendo mais para o drama do que para a reconstrução histórica.
Pode-se verificar o método rigoroso de Delaroche a partir dos desenhos prévios que produziu para a realização desta tela. Hoje expostos no Louvre estes esboços revelam como cada figura era cuidadosamente estudada em desenhos separados. O desenho é claro, a linha precisa, com atenção escrupulosa devotada ao menor detalhe. O vestuário é próprio da moda do século XVI, o que demonstra seu gosto pela pesquisa e pela precisão, a serviço da credibilidade histórica. Nos desenhos do Louvre percebe-se que a posição do carrasco aparece em sua forma definitiva, pronta para a transposição por um processo de ampliação da tela. Mas na versão final, o carrasco surge um pouco mais idoso, embora com a mesma elegância no gesto, o que é surpreendente para quem dedica o seu dia de trabalho para ceifar vidas.
A postura de cada um foi calculada para intensificar a natureza trágica do tema, enquanto a face expressa sentimentos profundos, mas discretamente contidos. Por meio de uma observação profunda, Delaroche representa testemunhas subjugadas, produzindo uma análise sensível de cada personagem através de uma estética cuidadosa e livre de qualquer tipo de violência, tortura, agressão ou mesmo dor física.
Este contraste contribui para a tensão da cena. Pele clara e suave, vestido delicado, ricos ornamentos, vestuário limpo e elegância dos gestos combinam-se para reproduzir a execução irreversível, sob o efeito de um metálico e frio machado, da jovem bela e indefesa.
O contexto da sua execução adiciona ainda mais dramaticidade à cena: Jane tornou-se rainha após a morte de seu primo, o rei Eduardo VI em 1553. Como protestante foi corada rainha por um grupo palaciano que temia a posse de Maria, católica, filha mais velha Henrique VIII, o poderoso monarca que implantara o protestantismo na Inglaterra, o que teve  continuidade no governo seguinte, de seu filho Eduardo VI. O plano não funcionou, já que Maria, dispunha de maior apoio popular, por ser a primeira da linha sucessória.

Assim, Jane caiu em um jogo de poder, traição e corrupção e pagou com a própria vida. Na tela, ela é conduzida ao cadafalso, um bloco de madeira em que apoiará seu pescoço, de tal forma que a cabeça decepada será recolhida por um amontoado de capim, colocado ali para absorver o sangue e diminuir a sujeira sobre o chão. As duas damas de companhia, no canto esquerdo, testemunham a cena à espera da sua vez. O carrasco, no canto direito, estende o braço para o golpe fatal, sem qualquer evidência de crueldade ou piedade no rosto frio.
O leitor deve ter se dado conta de que aqui a leitura de imagem ganha fôlego com o conhecimento dos métodos de trabalho do pintor e do contexto social dos seus personagens. Observe que a preocupação não é a de classificar o estilo genérico do autor, mas em descrevê-lo nesta obra em particular. Não é desqualificar a obra ou o gosto da época, mas restituir-lhe o sentimento, reencontrar a motivação e experimentar a emoção que causou ou que ainda pode causar.
Também não nos preocupamos em apregoar a verdadeira interpretação ou gerar o discurso final a partir de uma postura de autoridade sobre o tema. A imaginação é convocada a todo instante. Foi usada pelo próprio pintor: a cena não teve testemunhos pictóricos e há quem diga que não ocorreu no calabouço, mas sim em praça pública. Deve ser usada pelo observador.
A imaginação, aliada à fruição, remete o observador à tarefa da expressão do que observou. Esta é a essência da experiência estética, única, particular e finita. Nesta direção também apontam os Parâmetros Nacionais:
“Diante de uma obra de arte, habilidades de percepção, intuição, raciocínio e imaginação atuam tanto no artista quanto no espectador. Mas é inicialmente pelo canal da sensibilidade que se estabelece o contato entre a pessoa do artista e a do espectador, mediado pela percepção estética da obra de arte.” (PCNs-Arte)
Vale a pena, o leitor conferir uma das produções finais das garotas da citada escola londrina, que transcrevemos a seguir:

My Last Breath - Lady Jane Grey

Why not? I, character of manipulation, I kneel. The world around me darkens as my eyes are covered. How do I feel? I don’t. My hands are shaking, but I am numb. I don’t feel. I can’t.
‘Bend down’, they say. Shall I comply? I bend down. Will it hurt? With baited breath I expose my neck. My bare skin makes contact with the scratchy hard wood block, where many before me have lost.
I think of the executioner. What does he feel? Ending the lives of countless before me. I remember the many public executions I’ve been to. The steady swish flick of the axe, then the thud of a lifeless head on the cold floor. That was going to happen to me. My head, not with my neck. A steady flow of red blood. The crowd around me seem to hold their breath. They gasp. I seize my last breath, exhale my last… and… goodbye. So long. This will be my last. This is all I will ever… 

Meu último suspiro -Lady Jane Grey

Por que não? Eu, personagem de manipulação, eu me ajoelhei. O mundo em volta de mim escurece enquanto meus olhos são vendados. Como me sinto? Eu não sinto. Minhas mãos estão tremendo, mas eu estou entorpecida. Eu não sinto. Não consigo.
‘Curve-se’, disseram. Deveria obedecer? Eu me curvei. Vai doer? Com um suspiro engolido, levanto meu pescoço. Minha pele nua entra em contato com o áspero e duro bloco de madeira, onde muitos antes de mim perderam.
Eu penso no algoz. O que ele sente? Pôs fim em inúmeras vidas antes da minha. Eu lembro de muitas execuções em público que assisti. O movimento rápido, firme e suave do machado, e então o som da batida de uma cabeça sem vida no chão frio. Aquilo iria acontecer comigo. Minha cabeça, e não meu pescoço. Um fluxo constante de sangue vermelho. A multidão em volta de mim parecia segurar o fôlego. Ofegaram. Eu segurei meu último suspiro, exalei-o... e... adeus. Até mais. Esse será meu último. Isso é tudo que eu já...

(Tradução: Pedro Oller)