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Literatura, História e Arte |
Os
Homens Que Não Amavam as Mulheres, Stieg Larsson,
Compahia das Letras, 2008
“O Homem que não amava as
mulheres”, traduzido para o inglês como “The Girl With Dragon Tatto”,
é o primeiro livro da trilogia Millennium, do escritor sueco Stieg Larsson, que já vendeu 20 milhões de cópias em 41
países (2010). Mas o autor não assistiu ao sucesso da própria obra. Sua militância
contra o neo-nazismo na Suécia lhe rendeu várias
ameaças de morte. Livrou-se de ser assassinado, mas não resistiu a um ataque
cardíaco em 2004, aos 50 anos de idade, pouco depois de entregar a trilogia aos
editores.
Este romance combina uma
narrativa de suspense policial com um tom crítico sobre o sistema econômico
sueco, principalmente no que se refere às manobras financeiras das grandes corporações.
Após uma derrota na Justiça e uma condenação por difamar um grande investidor,
o personagem central, Mikael Blomkvist,
co-editor da revista Millennium, aceita uma estranha proposta de trabalho de um outro mega empresário, Henrik Vanger, dono de um decadente complexo industrial de
mineração. O magnata octogenário contrata Blomkvist para investigar o desaparecimento da própria sobrinha 40 anos antes. O
jornalista conta com a ajuda decisiva de Lisbeth Salander,
uma jovem problemática que exibe uma tatuagem de dragão no pescoço e muita
habilidade com senhas, computadores e internet.
Blomkvist é
divorciado e tem como amante a própria sócia da Millennium, Erika Berger, com a
anuência do marido desta. Em determinado momento das investigações também inicia
um flerte com a jovem da tatuagem. Ele não é o homem que não amava as mulheres,
portanto. Quem as odiava e as perseguia até a morte, sem antes esquecer uma
sessão de tortura, era o assassino em série que emergirá das pesquisas da dupla Blomkvist-Salander.
Impossível
parar de ler, mais impossível ainda é evitar a respiração ofegante e o coração disparado, principalmente quando eles se aproximam do bunker do assassino.
O
estilo de Stieg Larsson é envolvente. Com uma escrita
coloquial e direta, seu texto tem algo de cinematográfico. É como se estivéssemos em Estocolmo,
embarcando em um moderno trem que nos transportaria por paisagens gélidas. Na
capital a temperatura estava em torno de zero grau, mas em Hedestad,
a duas horas de viagem, Blomvkvist enfrentaria até os
37 graus negativos para levar a diante suas investigações. Compartilhamos com o
jornalista o frio, o silêncio e a beleza da pequena aldeia em que permanece por
quase um ano.
Larsson
conquista o leitor até o final. Para decifrar o mistério das jovens
assassinadas faz uso de um recurso engenhoso: associa determinadas passagens
bíblicas com as características dos crimes. Assim, aos poucos, o leitor se dá
conta de que o que pareciam apenas números de telefones rascunhados
apressadamente em um pedaço de papel, na verdade eram referências precisas do Levítico, que serviriam como senhas para revelar o modus operandi do criminoso.
De
fato, o leitor ficará escandalizado com os requintes de
crueldade, além de tudo, inspirados no livro sagrado. Veja, como exemplo, este caso:
“ Maio de 1957, Rakel Lunde, quarenta e cinco anos. Era dona de casa e
considerada uma espécie de excêntrica da região. Via a sorte das pessoas
consultando as cartas, lendo a mão e coisas do gênero. Rakel morava numa casa bem isolada na periferia de Landskrona,
onde foi morta ao amanhecer. Encontraram-na nua e amarrada a um varal de roupa
no pátio, com a boca tapada por uma fita adesiva. Causa da morte: foi agredida
com uma pedra pesada várias vezes. Apresentava várias contusões e fraturas”
O trecho correspondente do Levítico era o capítulo 20, versículo 27: "Qualquer homem ou mulher que evocar os
espíritos ou fizer adivinhações, será morto. Serão apedrejados e levarão a sua
culpa.". Um caso de podridão humana, com certeza. Mas, além de exalar algo
da monstruosidade do criminoso, fica um pouco desconcertante para os leitores da
Bíblia, exceto se for tomado em seu contexto cultural, nem literal, nem
dogmático.
A personalidade do serial-killer é composta pela
intolerância ideológica, própria dos neo-nazistas denunciados pelo escritor da vida real, pela perturbação religiosa e pelo
sadismo. Sob o ponto de vista psicanalítico, o perfil deste criminoso pode ser
esclarecido pela aplicação do conceito de sadomasoquismo: “o sadismo é a perversão sexual em que a satisfação está ligada ao
sofrimento ou à humilhação infligida a outrem” (Laplanche e Pontiallis, Vocabulário da Psicanálise, p 465).
Para Freud há uma intrínseca correlação entre
infligir a dor a alguém e sofrê-la, ao mesmo tempo: “enquanto se infligem dores a outros, goza-se com elas masoquistamente
na identificação com o objeto [pessoa] que sofre” (Freud, Obras Completas, Vol 20, ,pag 221, em alemão). Ora, a identificação com a pessoa que sofre está ligada à
infância do sádico, que em geral sofreu violência sexual por parte de um
adulto. Este detalhe não escapou a Salander:
“Eu fui ... eu tive um tempo livre na primavera
passada e pesquisei coisas sobre sádicos num contexto bem diferente. Um dos
documentos que li era um manual do FBI americano que afirmava que um número
impressionante de assassinos seriais capturados vêm de lares problemáticos e na
infância se comprazem em torturar animais”(pag 358)
Infância problemática é eufemismo para o caso deste
criminoso. O assassino fora sistematicamente violentado pelo próprio pai,
quando tinha apenas 12 anos, juntamente com sua irmã, justamente a sobrinha do
magnata decadente. Mas o leitor não se iluda. Aqui ainda não foi revelado o
segredo último deste mistério. Deixo para o leitor a satisfação triunfante de
chegar à solução definitiva do caso.
João
Pedro Ricaldes dos Santos – Dezembro de 2010
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Excertos
Sobre
o Levítico e os crimes (pp 341 -342)
1949 - Rebecka Jacobsson, Hedestad (30112)
1954 Mari Holmberg,
1957 Rakel
Lunde, Landskrona (32027)
1960
(Magda) Lovisa Sj6berg, Karlstad (32016)
1960 Liv
Gustavsson, Estocolmo (32016)
1962 Lea
Persson, Uddevalla (31208)
1964 Sara Witt, Ronneby (32109)
1966 Lena Andersson,
- O primeiro caso dessa série parece ser Rebecka Jacobsson, 1949, do qual
você já conhece os detalhes. O caso seguinte que encontrei é Mari Holmberg, uma prostituta de
trinta e dois anos de Kalmar, morta em sua casa em
outubro de 1954. Não se sabe exatamente quando ela foi assassinada, pois só foi
encontrada algum tempo depois, provavelmente nove ou dez dias.
- E como você fez a ligação entre ela e a lista de Harriet?
- Ela tinha as mãos e os pés amarrados e o corpo
coberto de ferimentos terríveis, mas a causa da morte foi asfixia. O assassino
enfiou um guardanapo na garganta dela.
Mikael ficou em silêncio antes de abrir a Bíblia no local indicado, capítulo XX
do Levitico, versículo 18.
"Se um homem dormir com uma mulher durante o
tempo de sua menstruação e vir a sua nudez, descobrindo o seu fluxo e
descobrindo-o ela mesma, serão ambos cortados do meio de seu povo."
Lisbeth concordou com a cabeça.
- Harriet Vanger fez a mesma ligação. Bem, vamos ao próximo.
- Maio de 1957, Rakel Lunde, quarenta e cinco anos. Era dona de casa e
considerada uma espécie de excêntrica da região. Via a sorte das pessoas
consultando as cartas, lendo a mão e coisas do gênero. Rakel morava numa casa bem isolada na periferia de Landskrona,
onde foi morta ao amanhecer.
Encontraram-na nua e amarrada a um varal de roupa no
pátio, com a boca tapada por uma fita adesiva. Causa da morte: foi agredida com
uma pedra pesada várias vezes. Apresentava várias contusões e fraturas
- Oue horror, Lisbeth!
Tudo isso é monstruoso.
- E é só o começo. As iniciais RL coincidem - achou
a citação?
. - É evidente. "Qualquer homem ou mulher que
evocar os espíritos ou fizer adivinhações, será morto. Serão apedrejados e
levarão a sua culpa."
- A seguir vem Lovisa Sjõberg em Ranmo, perto de Karlstad. É a que Harriet se
refere como Magda. Seu nome completo era Magda Lovisa,
mas todos a chamavam de Lovisa. Mikael escutou com atenção Lisbeth relatar os detalhes bizarros do assassinato de Karlstad. Quando ela acendeu um cigarro, ele a interrogou
com o olhar, mostrando o maço. Ela o empurrou para ele.
- Então o assassino também atacou o animal?
- A Bíblia diz que, se uma mulher se acasala com um
animal, os dois serão mortos.
- Mas é pouco provável que essa mulher tenha se
acasalado corri uma vaca!
- A citação pode ser interpretada em sentido amplo.
Basta que ela tenha entrado em contato com um animal, o que uma proprietária
rural certamente precisa fazer todos os dias.
- Certo. Continue.
- a próximo caso da lista de Harriet é Sara. Identifiquei-a como Sara Witt, trinta e sete
anos, residente
los bombeiros.
- E a ligação?
- Escute mais um pouco. Sara Witt era filha de pastor e mulher de pastor. O marido estava fora justamente naquele
fim de semana.
- "Se a fílha de um
sacerdote se desonrar pela prostituição, ela desonra o pai; será queimada no
fogo." De fato, confere com a lista. Você disse que descobriu outros
casos.
Sobre
o sadismo (pag 358)
- Eu fui ... eu tive um tempo livre na primavera passada e pesquisei
coisas sobre sádicos num contexto bem diferente. Um dos documentos que li era
um manual do FBI americano que afirmava que um número
impressionante de assassinos seriais capturados vêm de lares
problemáticos e na infância se comprazem em torturar animais. Além disso, muitos serial killers americanos foram presos por incêndios
criminosos.
- Sacrifício de animais e sacrifício pelo fogo, é
isso que está querendo dizer?
- Sim. Os animais torturados e o fogo constam em
vários casos registrados por Harriet. Mas eu pensava
mais no presbitério, que foi incendiado no final dos anos 1970.
Sobre
sadismo (p 418)
Suas vítimas eram mulheres anônimas, geralmente
recém-imigradas, que não tinham amigos nem contatos sociais na Suécia. Havia
também prostitutas e mulheres socialmente marginalizadas, com abuso de drogas,
álcool e outros problemas existenciais.
Em seus estudos sobre a psicologia do sadismo
sexual, Lisbeth Salander aprendera que esse tipo de
assassino gostava de colecionar objetos das vítimas.
Eles serviam de suvenires utilizados para recriar em
parte o gozo sentido.
Martin Vanger desenvolvera
essa tendência redigindo uma compilação necrológica. Catalogara minuciosamente
suas vítimas, com anotações que comentavam e descreviam seus sofrimentos,
juntando a seus crimes filmes de vídeo e fotografias.
A violência e o assassinato eram o objetivo final,
mas Lisbeth concluiu que, na realidade, a caça era o que interessava a Martin Vanger. Em seu laptop ele criara um banco de dados com o
registro de centenas de mulheres. Havia empregadas do grupo Vanger,
dos restaurantes onde ele fazia suas refeições, recepcionistas dos hotéis onde
se hospedava, funcionárias da previdência social,
secretárias de homens de negócios com quem se relacionava e uma série
de outras mulheres. Era como se Martin Vanger registrasse e catalogasse praticamente todas as mulheres que encontrava
.
Sobre
o sistema financeiro e o jornalismo econômico (p 510)
- A Bolsa é algo bem diferente. Nela não há
economia, nenhuma produção de mercadorias ou de serviços. Há somente fantasias
nas quais, de uma hora para outra decide-se que essa
ou aquela empresa vale alguns bilhões a mais ou a menos. Isso não tem nada a
ver com a realidade nem com a economia sueca.
- Quer dizer então que não tem a menor importância
que a Bolsa esteja em plena queda livre?
- Isso mesmo, não tem a menor importância -
respondeu Mikael com uma voz tão cansada e resignada
que ele parecia uma espécie de oráculo. Sua frase seguinte seria citada mais de
uma vez ao longo do ano. Ele prosseguiu:
- Significa apenas que os grandes especuladores
estão transferindo suas aplicações financeiras em empresas suecas para empresas
alemãs. Se comportam como as hienas das finanças que
um repórter um pouco mais corajoso deveria saber identificar e levar ao
pelourinho como traidores da pátria. São eles que, de forma sistemática e
deliberada, minam a economia sueca para satisfazer os interesses de seus
clientes.
Em seguida, a entrevistadora da TV4 cometeu o erro
de fazer exatamente a pergunta que Mikael desejava
ouvir.
- Então está querendo dizer que a mídia não tem
nenhuma responsabilidade?
- Ao contrário, a mídia tem uma enorme
responsabilidade. Durante pelo menos vinte anos, um grande número de
jornalistas econômicos se omitiu de examinar o caso Hans-Erik Wennerstrõm. Em vez disso, esses jornalistas ajudaram
a construir o prestígio dele através de retratos idólatras e delirantes.
Se tivessem trabalhado corretamente durante todos
esses anos, não estaríamos nessa situação hoje.
Observação: um tanto ingênua a abordagem do personagem. Não há como desvincular a empresa-mercadoria das ações desta empresa na Bolsa. |