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A ceia de Emaús (1601). Michelangelo da Merisi (Caravaggio)

Michelângelo da Merisi, conhecido pelo nome de sua pequena cidade natal, Caravaggio, foi um dos maiores mestres do barroco italiano. É conhecido pelo emprego da técnica compositiva do "claro-escuro" e por protagonizar repetidas polêmicas na vida privada e no mundo da arte. Esta obra é feita de justaposições: seu tema religioso recebe tratamento de natureza-morta; o momento bíblico ganha contornos de uma taberna contemporânea; Cristo ressuscitado é mais jovem do que deveria; o espanto dos apostolos contrasta com o distanciamento daquele que serve a mesa. Enfim, o rigoroso realismo aassocia-se ao simbolismo das frutas, do gesto e das sombras, para alcançar uma dimensão transcendente, a manifestação do sagrado no cotidino, a epifania do dia-a-dia

Este fabuloso retábulo foi encomendado pelo nobre romano Ciriaco Mattei ao jovem e polêmico pintor Michelangelo Caravaggio. Posteriormente foi adquirida pelo cardeal Scipione Borghese e hoje pertence ao acerco da Galeria Nacional de Londres.
Executada em 1601, esta obra de grandes dimensões (171 cm x 196) revela elementos significativos do estilo de Caravaggio e de seu contexto cultural (barroco) e religioso (Contra-reforma). A composição de Caravaggio é criada pelo requintado jogo de luz e sombra que orienta o olhar do observador para uma cena ao mesmo tempo realista e carregada de simbolismo.

O pintor italiano recria o episódio bíblico relatado pelo evangelho de Lucas (Lc 24, 30-31) no qual, após a crucificação, Jesus aparece para dois apóstolos, sem que estes pudessem se dar conta da verdadeira identidade do Mestre, ao longo da estrada  de Emaús, pequena vila próxima a Jerusalém. Os apóstolos se encantam com o conhecimento das Escrituras demonstrado por aquele viajante inesperado e o convidam para uma refeição. No justo momento em que Ele abençoa e parte o pão, na taberna de Emaús, os apóstolos passam a enxergar o verdadeiro Jesus que, no entanto, torna-se invisível no instante seguinte. Vamos conferir as palavras de Lucas:

“27 - E, começando por Moisés e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras.
28 - E chegaram à aldeia para onde iam, e ele fez como quem ia para mais longe.
29 - E eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque já é tarde, e já declinou o dia. E entrou para ficar com eles.
30 - E aconteceu que, estando com eles à mesa, tomando o pão, o abençoou e partiu-o e lho deu.
31 - Abriram-se-lhes, então, os olhos, e o conheceram, e ele desapareceu-lhes.
32 - E disseram um para o outro: Porventura, não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava e quando nos abria as Escrituras?

A interrupção da vida cotidiana por um elemento sublime é um tema recorrente na obra de Caravaggio. Também ocorre na tela “O Chamado de São Mateus”. O pintor parece sugerir que talvez Jesus possa entrar em nossos encontros e afazeres cotidianos.

É interessante observar que o claro-escuro de Caravaggio tem uma função alegórica, não meramente de iluminação. O foco luminoso originado no canto superior esquerdo recai sobre a cena de tal forma que contribui para exaltar o clímax deste evento bíblico, pois deixa ser visto o que antes não se percebia, descortina ao espírito e aos olhos a realidade transcendente, causando espanto e admiração ao mesmo tempo.

A súbita revelação produz movimentos bruscos nos apóstolos: o da esquerda levanta-se e joga a cadeira para trás, o da direita abre os braços estarrecido. Ambos parecem ultrapassar os limites físicos do quadro, seja pelos dedos da mão esquerda do apóstolo da direita, em direção à face do observador, seja pelos braços da cadeira aprisionada no canto inferior esquerdo. Um rasgão no paletó deixa entrever um pedaço do tecido branco da camisa de baixo, expediente calculado para acentuar o escorço.

A cena religiosa contem ainda um primoroso trabalho de natureza-morta. As frutas do cesto sugerem o pecado já cometido (pela presença de maças machucadas) e a salvação (pelas uvas). A sombra do cesto traça o contorno de um peixe, símbolo de Jesus para os cristãos dos primeiros séculos. A concha no peito do apóstolo indica sua condição de peregrino. O pão, a ave e a jarra, sobre uma toalha branca, são reproduzidos com incrível realismo. Mas o rigoroso realismo de Caravaggio, envolto no seu típico chiaro-scuro, trabalha a favor da experiência espiritual, contribuindo para transmitir a epifania, a manifestação sagrada em local mundano, Jesus na sala de jantar.

A composição estrutura-se em torno do gesto eucarístico. Acentuado pela brancura excessiva da toalha da mesa, o ato sagrado executado com a mão direita é o foco dos olhares de ambos os apóstolos e seus braços constituem com os de Cristo uma espécie de circunferência que abriga todos os elementos da natureza-morta. A ambientação contemporânea (Roma, século XV) do episódio bíblico (Palestina, século I) confere certa proximidade ao observador, atualizando o divino no humano, o sagrado no cotidiano.
Caravaggio não pintou para nós, do século XXI, mas a universalidade da mensagem de Cristo, aliada ao realismo transcendente do pintor podem ainda tocar o observador de nossos tempos. Basta um pouco de imaginação e certa dose de fé para deixar-se alcançar por esta retórica visual. Caravaggio apresenta não um Cristo distante e inalcançável, mas sim um Cristo nas reuniões informais de amigos e nas atividades banais do dia-a-dia. Estamos todos em Emaús, Jesus ao nosso lado, mas sem nos darmos conta da sua sagrada presença. O leitor deverá puxar pela memória todo seu próprio percurso de vida e descobrir em que momentos Ele esteve e não foi visto e quando finalmente se deu o se dará a revelação.
Vez ou outra, precisamos lembrar que o estatuto da arte varia com o tempo histórico. Se o leitor se irritar com este parágrafo catequético, basta tomá-lo apenas como nosso recurso didático. Assim, perdoados, podemos afirmar que todos nós estamos diante de um objeto de arte concebido como de adoração.
Foi justamente como objeto de adoração que esta tela provocou polêmicas seu tempo. O mundo cristão estava dividido mortalmente entre católicos e protestantes. Para os luteranos, a eucaristia, tema deste quadro, não significava e não significa ainda hoje presença real com transubstanciação. O quadro de Caravaggio apregoa a versão católica sobre a eucaristia, poucos anos antes da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) que lançaria a Europa em mais um banho de sangue feito em nome do Senhor. O pão feito carne e o vinho feito sangue são metáforas da presença de Cristo para muitas denominações cristãs atuais, mas são realidade sagrada para os católicos até hoje. Vejamos o que diz, a este respeito, um extenso documento de João Paulo II publicado em 1993:

“No santíssimo sacramento da Eucaristia estão ‘contidos verdadeiramente, realmente e substancialmente o Corpo e o Sangue de Cristo e, por conseguinte, o Cristo todo’” (Catecismo Da Igreja Católica, 1993, parágrafo 1373)

O texto de Lucas não explicita, mas cabe perguntar porque Jesus desapareceu depois da revelação ocorrida com o gesto sagrado. Dois minutos para o leitor responder: para onde foi Cristo depois que ficou invisível (“Abriram-se-lhes, então, os olhos, e o conheceram, e ele desapareceu-lhes”, Lc 24, 31). Respondeu certo quem disse: para o pão. Não poderia estar na forma de homem e na forma de pão ao mesmo tempo. O pão pascal e sacrificial é consumido como memória de Cristo e como forma d fiel estar  Nele. É comunhão, afinal.

Consideramos que estas ponderações de ordem teológica se prestam apenas para estimular a fruição da obra, ampliando nossa capacidade de fazer a leitura desta imagem. Não se trata de exegese bíblica.

Não bastasse a oposição do mundo protestante de sua época, Caravaggio sofreu restrições e censuras também nos círculos católicos. De acordo com o evangelho de Marcos Jesus reapareceria aos apóstolos “em uma outra forma” (Mc, 16,12). Talvez por isto Caravaggio tenha optado por um Jesus sem a barba e sem a idade da crucificação.
Ocorre, porém, que Caravaggio se deu o direito de introduzir muitas novidades sobre o relato dos evangelistas, além de romper com a tradição iconográfica de sua época. O seu Jesus não tem 33 anos e não tem barba. É muito jovem e levemente feminino. Os apóstolos maltrapilhos parecerem grotescos demais para o gosto da época. Além disso, Caravaggio já era conhecido pelos seus personagens sensuais, seja em temas cotidianos ou religiosos. Sua vida pessoal também estava repleta de passagens escandalosas, brigas de rua, e boletins de ocorrências policiais. Chegou a matar uma pessoa com a qual jogava tênis. Nove anos depois de pintar este quadro viria a morrer, com apenas 39 anos de idade. 
Toda sua obra recebeu críticas e desaprovação do alto clero. Mas teve grande aceitação entre a elite mercantil da Itália. Numa outra oportunidade podemos explorar as relações entre a vida e a obra de Caravaggio. Por ora, voltemos os olhos (do espírito) ao quadro e, se possível, à  presença do sagrado em cada pequeno e banal ato do cotidiano.